Guerra na Ucrânia interpela a humanidade, diz núncio Kulbokas
Vatican News
Comentário do Núncio Apostólico na Ucrânia, arcebispo Visvaldas Kulbokas, sobre o terceiro aniversário da guerra em larga escala contra a Ucrânia:
"Já estamos no terceiro aniversário da guerra em larga escala contra a Ucrânia. Gostaria de sublinhar aqui o aspecto prioritário que, falando com os ouvintes da Rádio Vaticano, para mim é uma forma de rezar, porque sei que, especialmente no Ano Jubilar, a oração da Igreja é ainda mais intensa. Portanto, também udo o que compartilho com vocês sobre a Ucrânia, confio às vossas orações: este é o aspecto mais caro e precioso. E assim também compartilho todas as notícias ou reflexões em espírito de oração.
Um exemplo a partir do qual eu começaria por sublinhar o que é guerra, é a história de uma senhora que é civil e, portanto, não tem nenhuma ligação com as ações militares. Esta senhora de sessenta anos está em uma prisão russa há quase três anos. Ela me contava que na prisão houve um período muito difícil durante o qual ela foi privada do sono por várias semanas como forma de tortura. Ela diz que somente sob esse aspecto – não conseguir dormir por 2 ou 3 semanas – cria uma dificuldade enorme porque, diz ela: “Eu não conseguia mais entender o que eu tinha feito e o que eu não tinha feito, o que correspondia à realidade, o que era fantasia ou sugestão. Não me lembrava mais o que havia afirmado, dito e assinado."
Assim estão várias milhares de pessoas e até agora eu pessoalmente não vi nem um canal eficaz que possa funcionar e mais uma vez confio novamente a situação de milhares e milhares de prisioneiros, que estão sem esperança, às orações de todos, porque o próprio Senhor Deus Todo-Poderoso pode dar esperança contra toda esperança, como o Santo Padre também enfatizou na Bula de Proclamação do Jubileu. Isto para sublinhar a importância da oração, porque há situações que são realmente becos sem saída do ponto de vista humano.
No final deste terceiro ano de guerra em larga escala, se repasso o último passado, poderia destacar quatro eventos principais. Um deles é a libertação dos dois sacerdotes greco-católicos, o padre Ivan Levytskyi e Bohdan Heleta, que ocorreu em 28 de junho do ano durar. São dois sacerdotes redentoristas, que ficaram presos por mais de um ano e meio e, por isso, também passaram por uma experiência difícil e foi uma grande alegria poder abraçá-los. E depois dá alegria ver a fé deles, graças à qual, apesar das muitas dificuldades que sofreram durante o tempo em que estiveram na prisão, continuaram a unir o próprio sacrifícioa aos sacrifícios de Jesus.
Outro momento muito importante e alegre foi a visita do cardeal Secretário de Estado Pietro Parolin à Ucrânia em julho passado. Foi uma visita marcada pela oração, que foi o coração desta visita. Os encontros do enviado especial do Santo Padre com as autoridades também foram importantes. Foi um momento muito concreto de discussão, reflexão, contatos, diálogo. Foi importante sentir a presença dos superiores, do decretário de Estado e do próprio Santo Padre por meio do secretário de Estado, este presente também fisicamente aqui na Ucrânia.
Outro momento muito importante, eu diria que o mais alegre, aconteceu há algumas semanas, no dia 1º de fevereiro, quando um grupo de cerca de 200 jovens católicos ucranianos teve um encontro on-line, por meio de uma videoconferência, com o Santo Padre. Como o Ano Jubilar é dedicado à esperança, também para eles, para esses jovens, foi um forte sinal de esperança poder não apenas ouvir e ler o Santo Padre, mas vê-lo, porque a presença por meio do vídeo praticamente nos ajudou a perceber como se o Santo Padre tivesse vindo quase fisicamente a Kiev. E também ouvi-lo de uma forma ininterrupta, não por meio de jornais onde às vezes são feitas interpretações ou algo é tirado do contexto, mas ouvir o seu coração foi muito importante. Tenho visto muitos pastores e jovens agradecerem ao Santo Padre por esta iniciativa.
Aqui eu gostaria de acrescentar algo que diz respeito a estes dias, em que o Santo Padre está com problemas de saúde: parece que a guerra deveria cobrir todo o espaço de informação, em vez disso, entre as primeiras notícias também na Ucrânia, há aquelas relacionadas à saúde do Papa. Portanto, nestes dias, recebi muitas mensagens de solidariedade não apenas de católicos ou bispos, mas também de líderes de outras Igrejas, do Gabinete do presidente da Ucrânia, com uma preocupação sincera pela saúde do Santo Padre. Isso também foi surpreendente para mim, porque na realidade a guerra evidentemente ocupa toda a mente, todo o espaço. E, em vez disso, foi lindo ver como o pensamento sobre a saúde do Papa chega aos corações de autoridades estatais e pastores de diversas confissões.
Também porque, evidentemente, o espaço de informação é sempre muito diferente na Ucrânia em comparação com o de outros países. Por exemplo, lembro-me de que há algumas semanas falei com religioso que até o ano passado exerceu seu ministério na Ucrânia e agora está na Eslováquia. Ele me disse: “Assim que cruzei a fronteira ucraniana, depois de alguns dias, não consegui mais perceber a situação da mesma forma. Meu coração está com a Ucrânia, mas fisicamente estou a algumas centenas de quilômetros de distância e é mais difícil."
Essa é a grande dificuldade que às vezes tenho quando falo com interlocutores ou amigos que estão em outros países, conseguir entender quais palavras usar, como me expressar, porque o espaço mental é muito diferente. Mesmo uma coisa simples: para muitos meios de comunicação de massa fora da Ucrânia, sobretudo os meios de comunicação seculares, esta guerra se tornou, talvez em parte, uma coisa rotineira. Mas quando se está aqui, se entende que o número de mortos não está diminuindo.
As mortes no front estão aumentando, em 2023 foram mais do que no primeiro ano da guerra, no ano passado mais do que em 2023. O número de mortes de civis – como também apontam os relatórios das Nações Unidas – também cresceu e continua crescendo. Também aqui em Kiev, a mídia internacional fala de ataques com mísseis mais imponentes, aqueles que ocorrem talvez uma vez por mês. Mas se alguém me perguntasse quando foi a última noite sem um ataque de drones em Kiev, eu não me lembro mais. Se depois falamos de Kharkiv ou Kherson, ali chega também artilharia, então os bombardeios são muito mais numerosos e muito mais intensos do que em Kiev.
Voltando aos momentos relevantes do ano passado, gostaria de destacar o último que considero muito relevante: o movimento MEAN, que em julho (11-12 de julho) organizou, como no ano passado, uma manifestação pela paz na Ucrânia, em Kiev, com encontros de estudo. Eles planejam fazer isso também neste ano. O título do Movimento em si é "Movimento Europeu de Ação Não-Violenta" e eu diria que esta é a parte mais bonita, porque são pessoas de várias organizações católicas italianas e não só, que insistem no fato de que devemos mobilizar as sociedades antes que as guerras aconteçam, porque depois que a guerra começa já é tarde demais.
Nestes dias, quando ouvimos os políticos, vemos que esta não é mais uma guerra contra a Ucrânia. Porque se a princípio alguém podia pensar que tudo isso dizia respeito “somente à Ucrânia”, que “é um país distante”, aos poucos as consequências de tal guerra começam a afetar muitos mais países. Na verdade, tal guerra desafia toda a humanidade, porque se alguém pode pensar que “esta guerra não é minha”, em vez disso, uma guerra tão agressiva contra a Ucrânia viola não apenas vidas humanas, não apenas a paz na Ucrânia, mas viola a própria lei, o direito internacional, o direito internacional humanitário.
Isso significa que, ao quebrar as regras da justiça, não há mais pontos de referência e, portanto, não se pode fingir que "ok, haverá uma vítima e eu estarei salvo". Não, ataques desse tipo, mais cedo ou mais tarde, um após o outro, fazem novas vítimas, cada vez mais. Portanto, este Movimento Europeu de Ação Não Violenta também visa fortalecer a mobilização das sociedades civis para que a questão da guerra e da paz não seja deixada apenas para os políticos, mas que questione seriamente a todos sobre o que cada um, em seu papel, pode fazer. Porque realmente há muitas áreas nas quais é preciso intervir, insistir com os governos, com as organizações internacionais, para que a paz seja restabelecida.
Esses quatro pontos foram, na minha opinião, os elementos salientes do ponto de vista católico na Ucrânia no ano passado, mas eu destacaria como um grande presente, especialmente neste ano que apenas começou, como um Ano da Esperança. Quando falo com capelães militares, eles costumam me dizer que os vários comandantes de brigadas ou batalhões inicialmente relutam em ver o sacerdote ir ao encontro dos militares e às vezes perguntam: “Mas de que vocês nos servem? Trazem armas para nós?”
Em vez disso, depois eles veem que as confissões, a oração, o testemunho, levam aos soldados sobretudo a esperança, não a esperança humana, mas a esperança divina, a eterna, que é muito importante. E acontece que até mesmo os vários comandantes, aqueles que não acreditavam na utilidade desta missão espiritual dos sacerdotes, acabam por chamá-los e perguntar quando é que regressam. Então, se a esperança divina é tão importante lá, este é o sinal de que ela é o maior dom de que temos necessidade na Ucrânia: precisamos perceber fortemente que essa esperança que não decepciona, essa esperança divina. Então todos nós precisamos crescer espiritualmente, precisamos de um testemunho de esperança e dessa ajuda espiritual, psicológica e humana de toda a Igreja. E por isso agradeço também a todos os ouvintes da Rádio Vaticano.
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